Quando afirmei, semanas atrás, que o novo Código de Processo Civil (CPC) vai significar uma porta aberta à corrupção, tive também o objetivo de demonstrar que num Estado de Direito Democrático não se pode admitir a ideia de que juízes singulares disponham de poderes tão grandes como os que lhes confere o novo CPC em termos de prova, de execução provisória e, acrescento, de medidas cautelares e antecipatórias.
O Judiciário brasileiro é reconhecidamente o poder constituído da República que menos convive com a corrupção. Não há dúvida de que a esmagadora maioria de todos os nossos juízes é séria e proba os casos de desvio de conduta relativamente poucos. Contudo, se desejamos manter este quadro de equilíbrio no trato da corrupção no âmbito da atividade jurisdicional, não podemos nos despreocupar nunca, principalmente quando se propõe o aumento exagerado do poder dos julgadores de primeiro grau.
O perigo representado pela corrupção, no seu mais amplo sentido, foi a causa da Magna Carta (1215), Bill of Rights inglês (1689), que completou a Revolução Gloriosa, da Constituição dos Estados Unidos (1787), a primeira da era moderna, do Bill of Rights americano (1791), mas também do due process of law (1791 e 1868), da Revolução Francesa, e dos Estados de Direito que nela se inspiraram.
Foi justamente para impedir a corrupção no ventre do Estado e do poder, que países instituíram a separação e a tripartição de poderes por meio de constituições, a legalidade e a responsabilidade para os agentes públicos – o governo de leis e não de homens – e os direitos e garantias fundamentais para seus cidadãos.
Porque todos estão submetidos à tentação da corrupção é que não se pode conceder poderes incontrastáveis a juízes de primeiro grau, como faz o novo CPC: só um processo civil com limites precisos ao exercício do poder judicial pode representar segurança para a sociedade e justiça para cada um de nós.
E que, por favor, ninguém venha querer justificar a ampliação dos poderes dos juízes brasileiros usando como parâmetro o direito americano. Os Estados Unidos vivem sob a “common law”, caracterizada pelo direito não escrito, em que os juízes exercem função legislativa (“judge made law”) e onde o Judiciário tem um papel prevalente por causa da enorme autonomia jurídica atribuída aos estados federados pela Constituição de 1787. A imponência do Judiciário americano deita suas raízes na rejeição dos Estados Unidos ao modelo inglês de um Parlamento forte – por conta do que sofreram nas mãos deste Parlamento – e por conta do sistema da “common law” que dá aos juízes grande poder por conta de cláusulas abertas como a do “due process of law”, tanto no plano processual como substancial.
O
Brasil não tem a história americana, não vive sob a “
common law”, não dá ao Judiciário o poder de fazer leis, não lhe permite fazer controle de constitucionalidade com base apenas em razoabilidade, nem deve agora permitir que seus juízes exerçam poderes processuais insuperáveis que, entre nós, é de fato e de verdade o caminho aberto à tentação da corrupção.
Mas se quisermos buscar inspiração num país e num sistema jurídico mais próximos do nosso, talvez devêssemos mirar a França, que vive sob a “civil law” e que, por razões históricas, tem tanta desconfiança em relação aos poderes dos juízes monocráticos que institui sua primeira instância com nada menos do que três magistrados!
Será que, na contra-mão dos franceses, devemos confiar cegamente na nossa primeira instância a ponto de aumentar tanto os seus poderes e submetê-la às tentações que o excesso de poder é capaz de provocar?
Nenhum comentário:
Postar um comentário