Disse eu em outro sítio que a reforma política do país, que alguns chamam de “a
mãe das reformas”, deveria começar com a reforma do Judiciário e não do Executivo ou do Legislativo. Acrescentei que só um Judiciário reformado, reposicionado, transparente e insuspeito poderá arbitrar conflitos que fatalmente surgirão entre o Executivo e o Legislativo, bem como aqueles que irão aparecer no corpo da pirâmide administrativa e em seus patamares operacionais. Nenhuma outra instituição estará, pois, em condições de substituir o Judiciário.
Isto posto, creio que um novo filtro deva ser agora introduzido nessa reforma para a obtenção do Judiciário tão sonhado. Trata-se do filtro da “sustentabilidade”. Termo tão caro aos ecologistas e tão desprezado pelo mundo jurídico. Sim, refiro-me ao sentido estrito do termo sustentabilidade, o mesmo usado pela ecologia. Aquele sentido que propõe novo comportamento ao homem, a fim de que ele não detone a terra em que vive, bem como a vida de nossos filhos. Refiro-me, pois, à sustentabilidade da lei e da Justiça.
Penso que podemos citar, inicialmente, o que é absolutamente insustentável no país: primeiro, a existência de cerca de um milhão de normas com força de lei, confundindo o cidadão , a autoridade e o próprio juiz sobre o que é o justo e o que não é justo. Segundo, o judiciário atual acumula em seus escaninhos perto de 100 milhões de processos pendentes de julgamento. E, em terceiro lugar, a existência de R$ 100 bilhões em precatórios já vencidos nos contas-a-pagar da união, estados e municípios. Tudo isso é pólvora pura que poderá detonar a república e com ela a cidadania.
Como pesquiso o desempenho macro do Judiciário por 3 décadas **, e o acompanho através de rigorosas estatísticas, pude diagnosticar facilmente a moléstia que ele carrega. É ela consequência do gigantismo que perdeu o controle. É menos culpa do juiz e mais do legislador contemporâneo. Eu mesmo já a denominei de “Síndrome de Burnout”, em outro texto. Permitam-me a economia que faço, citando-me a mim mesmo: “[O judiciário] já percorreu nos anos recentes os 12 estágios fatais da ‘Síndrome de Burnout’, também conhecida como ‘síndrome do esgotamento profissional’, tendo atingido mesmo o seu último momento – o ‘colapso’”.
Quando o psiquiatra Herbert J. Freudemberg concebeu o burnout ( do inglês to burn out, queimar por completo ), percebeu-o em si mesmo. Tudo começava por uma exagerada dedicação à sua atividade profissional, passando pelo próprio isolamento e, por fim, atingindo a exaustão e o colapso. Creio mesmo que as próprias instituições , além de seus membros, estão sujeitos ao burnout. Cumpre dizer que no último estágio do burnout “a vida perde o sentido, e creio que também as instituições perdem o sentido”.*** Dessa forma, mesmo duas férias anuais concedidas ao juiz não o aliviará do stress que lhe provoca a pilha insana de processos em seu gabinete.
Sabemos, agora, o que é insustentável na lei e na justiça. Vamos examinar, pois, o seu contrário: a sustentabilidade.
Em Sustentabilidade XXI – educar e inovar sob uma nova consciência (Editora Gente), obra de Rodrigo Rocha Loures, assim ele a definiu: ”Sustentabilidade, hoje, é o novo nome do desenvolvimento, incluindo suas várias dimensões: econômica, social, cultural, físico-territorial e ambiental, político-institucional, científico-tecnológico e, para alguns, principalmente espiritual”.
Penso que a globalização dos problemas e a sua complexa cientificidade exigem visão transdisciplinar dos objetos a serem estudados em todas as disciplinas. Creio mesmo que a lei e a justiça não mais poderão ser feitas apenas com juristas e juízes. Devemos incluir para a feitura do direito e da justiça toda a gama de profissionais com os conhecimentos , visões e ângulos sugeridos por Loures em sua definição.
Avancemos. Estima-se que hoje existam 250 mil magistrados, número maior que o da tropa militar brasileira. Imagine-se se toda ela se compusesse de generais. Ou, em uma orquestra, todos se intitulassem maestros.
Eficiência, eficácia, custos, estatísticas, desempenho e uma miríade de procedimentos operacionais, nunca foram seriamente levantados e estudados e, principalmente, comparados nacionalmente pelos tribunais, até a criação recente do Conselho Nacional da Justiça. O CNJ inicia um passo a passo o longo caminho em direção à esperada sustentabilidade da Justiça. Anteriormente, as correições realizadas interna corporis procediam de magistrados superiores, peritos nas leis e nas sentenças, mas pouco afeitos às atividades de controle e, especialmente, de custos.
A rigor, tais saberes são dos engenheiros e de outros profissionais adrede preparados, e não de juízes, educados para sentenciar. Tenho dito que a nossa reforma judiciária deve ser acompanhada pelos engenheiros, ou talvez até dirigida por eles.
Mas eis que vem o CNJ com todas aquelas missões. Parece que agora a orquestra vai afinar. Nasce o CNJ como um reclamo da sociedade civil e exigência dos bons princípios republicanos por transparência. Já vem ele com a modernidade do século XXI e opera com instrumentos até então desconhecidos no ambiente judiciário anterior: levantamentos nacionais e acesso absoluto a tudo o que ocorre. Enfim, marcação juiz a juiz. E tribunal a tribunal.
Esse impropriamente chamado “controle externo”, exercido pelo CNJ, e nunca antes conhecido, faz agora tremer a corporação, a orquestra. E surgem notas dissonantes. A voz do Judiciário, antes uníssona, está agora dividida e em descompasso; e os ruídos que de lá se ouvem ecoam-nos incompatíveis com uma sinfônica ensaiada e estudada.
Mas espere, está havendo dois comandos simultâneos: o do maestro e o do spalla, o primeiro violinista. Ambos parecem querer o domínio da sinfônica. O maestro, agora, atua como maestro e simultaneamente como spalla. Qual é, afinal, o espaço de cada um?, pergunta a plateia.
Sabe-se que é o spalla quem ensaia a orquestra e a ela dá o tom. Ele é também o substituto eventual do maestro. Desde o século XIX, as sinfônicas têm efetivamente dois distintos dirigentes: o maestro e o spalla. Anteriormente ,era o spalla quem dirigia os músicos batendo com seu arco de violino na madeira marcando asperamente o compasso. Com o surgimento do maestro, surgiu a batuta. Chamemos por enquanto o STF de maestro, e o CNJ de spalla.
Mas, voltemos a um ponto ainda dissonante, o CNJ, onde a sociedade civil tem finalmente algum acento. Tem apenas quatro membros de um total de 15. Todos os restantes 11 são da corporação. Antes que a sociedade civil pleiteie elevar o número de seus membros, a fim de que haja, efetivamente, o tal do controle externo, deixemos tocar a sinfônica como queiram os seus músicos. Certamente maestro e spalla se acertarão.
Entretanto, não se deve nunca esquecer, é o Estado quem paga os pesados estipêndios aos músicos. E é a sociedade civil quem paga, por sua vez , o Estado. E é ainda a sociedade civil quem paga os caros ingressos para ouvi-los. Por favor, não desafinem!
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