terça-feira, 17 de abril de 2012

DIREITO DE DEFESA O STJ e a presunção de violência no estupro Por Pierpaolo Cruz Bottini


Uma decisão polêmica do STJ sacudiu o mundo jurídico, gerando reações intensas da comunidade política, de movimentos sociais e mesmo de setores da mídia.
Nela, a 3ª Seção do STJ se deparou com o caso de um homem que teve relações sexuais com três meninas de 12 anos. A discussão girou em torno da possibilidade de caracterizar esse comportamento como estupro. A acusação apontou que o texto do Código Penal vigente à época – hoje alterado – presumia a violência do homem que tivesse relações sexuais com mulheres menores de (ou com até) 14 anos (artigo 224, alínea “a”). Logo, a constatação da idade e do fato de haver relação seria suficiente para a caracterização do estupro.
A defesa indicou que esta presunção de violência do Código Penal era relativa e admitia prova em contrário. Destacou que – no caso concreto – teria havido concordância das vítimas para o ato sexual, razão pela qual não se tratou de estupro.
O STJ acolheu a tese da defesa. E o mundo veio abaixo com criticas candentes, na seara nacional e internacional, acusando a Corte de favorecer a prostituição infantil e a impunidade da pedofilia.
No entanto, uma leitura menos apressada dos termos da decisão, desprovida dos anseios de calamidade que envolvem interpretações açodadas, mostra uma lógica, uma racionalidade jurídica, com a qual se pode concordar ou discordar, mas de forma alguma adjetivar da forma pejorativa como fizeram alguns.
Como sublinhado, a discussão gira em torno do conceito de estupro. E estupro é um crime contra aliberdade sexual, pelo qual o agente constrange, mediante violência ou grave ameaça, sua vitima para a prática do ato sexual. Logo, a ideia de força, de coação, é a essência do ato de estuprar.
O legislador de 1940 entendeu por bem destacar que, nos casos em que um homem tem relação sexual com meninas de até 14 anos, a violência do ato, o constrangimento, seria presumido. Ou seja, não era necessário demonstrar a coação real, bastava revelar a existência do ato e a idade da vítima para caracterizar o crime.
O problema todo surge nos casos em que se verifica de forma patente o consentimento da jovem participante do ato sexual. São situações em que não há duvida sobre a voluntariedade, nos quais a própria mulher revela sua vontade de realizar o ato. Ainda aqui a violência se presume? Ainda aqui haverá o elemento constrangimento, que caracteriza o estupro?
Em suma, a questão em debate não é a prostituição infantil, mas o caráter da presunção do antigo artigo 224 do Código Penal: relativa ou absoluta, iuris tantum ou iuris et de iure, admite prova em contrário ou não admite?
No caso em discussão, ainda que o ato seja reprovável e mereça a atenção do Direito Penal, vez que prejudica o desenvolvimento saudável da criança e traz inúmeros problemas psicológicos e sociais, seu desvalor não está na violência, na coação, vez que o ato foi praticado com consentimento da vítima. Não parece lógico presumir a violência onde ela evidentemente não existe. Em suma, se trata de ato reprovável, mas não do crime de estupro, vez que houve concordância das supostas vitimas.
Pode-se dizer que menores de 14 anos não têm formação intelectual suficiente para compreender o ato, que seu discernimento é viciado e que, portanto, o consentimento não é válido. Isso é verdade. Embora as vítimas contassem com 12 anos e não fossem mais crianças do ponto de vista da legislação brasileira, eram meninas recém entradas na adolescência e não tinham completa consciência do sentido de muitos de seus atos. Mas também é verdade que possuíam alguma ideia do significado do ato sexual e de seu contexto. Em suma, ainda que não apresentassem desenvolvimento mental completo, sua concordância com a relação não é absolutamente desprovida de valor. Ainda que não confira licitude ao ato, afasta a presunção de coação, do constrangimento ou violência integradora do tipo penal do estupro.
A crítica, portanto, deve ser dirigida ao tipo penal, que mencionava a violência ou a ameaça, ainda que presumida. Se a ideia é proteger a criança e o adolescente do ato sexual prematuro, faz sentido a vedação de qualquer relação, independente de constrangimento ou não (como faz o tipo penal atual). Mas o legislador da época inseriu o elemento violência – ainda que presumida – na redação do tipo penal, e o principio da legalidade não autoriza o magistrado a afastá-lo, por mais bem intencionado que seja.
Alguns se levantaram contra a decisão, caracterizando-a como discriminatória, porque afastou a incidência da norma penal pelo fato de as vítimas se prostituírem. Mas tais críticos não leram ou não entenderam o acórdão. Em momento algum se usou da vida pregressa da vítima, do fato dela praticar atos sexuais mediante paga, ou de qualquer outro aspecto similar, para afastar a reprovação do comportamento do réu. O tribunal apenas asseverou que o consentimento afasta o estupro, não importando a opção de vida da vítima, ou sua qualificação.
Mais uma vez: não se discutiu a prostituição infantil ou a pedofilia. A celeuma se limitou ao fato de haver ou não violência. À questão de ser a presunção prevista no Código Penal relativa ou absoluta. E foi sobre isso – apenas isso – que a 3ª Seção do STJ decidiu. E não o fez de forma inédita, vez que o STF também já admitiu (embora tal posição seja minoritária) a presunção relativa da violência em crimes de estupro (STF, HC 73.662, Rel. Min. Marco Aurelio, j.21.05.96).
Ainda que a decisão encontre resistências e críticas do ponto de vista jurídico, é fora de qualquer cabimento qualificá-la como incentivo à pedofilia. Não será esta decisão do STJ que aumentará ou inibirá a prostituição infantil, até porque a lei que embasou a decisão ora comentada já foi alterada, e pelo texto atual a prática de qualquer relação sexual com jovens até 14 anos é crime, independentemente de violência ou não. Em outras palavras, a questão jurídica debatida pelo STJ se limita a fatos anteriores a 7 de agosto de 2009, vez que após esta data a coação para o ato sexual – presumida ou não – é desnecessária para a materialidade do tipo penal.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
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